Oi, Mieko. Espero que você leia logo este email e assim eu não precise esperar três meses por uma resposta, como aconteceu da última vez. Todavia você tem razão quando diz que isso não foi grave porque o conteúdo do email era "atemporal". Deu pra ler nas entrelinhas o que você realmente quis dizer. Você nunca vai perder este talento, este teu jeito de deixar as coisas bem claras sem dizê-las diretamente. É... eram as mesmas queixas românticas dos emails anteriores. Mas eu tenho melhorado com o passar do tempo, você não concorda? A história com aquela menina psicanalista deu em nada. Ao contrário do que eu temia, ela não ficava me analisando (pelo menos não parecia estar), mas sacou de cara que eu era furada. Disse que "estava começando a gostar de mim o suficiente pra se magoar se eu caísse fora e que antes disso acontecer, ela é que pularia". Meio clichê, mas neste universo das relações não existem muitas maneiras de dizer as coisas (meus emails estão aí pra confirmar). Disse também que tava escrito na minha testa que eu era uma casca vazia. Ela não sabia se valia a pena insistir comigo. Eu disse que não valia e ela foi embora. Agora tô de novo naquela rotina. Fico naquele nosso bar até fechar. Não é sentimentalismo, Mieko... vou chamar aquele lugar de nosso bar até morrer. Nenhum nome é mais apropriado. O pessoal ainda fala "o bar de vocês". Depois ficam um pouco constrangidos quando se ligam que o "vocês" não existe mais. Mas é isso... é o nosso bar. Parece uma puta incongruência chamá-lo de outra maneira. Fico lá bebendo uma atrás da outra. Agora tem umas cervejas artesanais por aqui. São mais caras, mas valem a pena. São mais saborosas e no outro dia minha cabeça ainda está no lugar. Os trabalhos como ghost writer estão indo bem. Tenho dois livros pra terminar ainda este mês. Verdadeiros lixos, mas quem liga? Um é de auto-ajuda. O autor faz questão de que o título seja "Não compre este livro", com letras vermelhas bem grandes, e depois um subtítulo, "a menos que queira ficar milionário". O que você achou? Se quiser posso te mandar um exemplar quando sair da gráfica. "A grande esperança branca da literatura gaúcha". Alguém dia desses lembrou que você me chamava assim. Uma das poucas coisas boas de você ter ido embora é que eu voltei a ter fé no meus critérios de avaliação das pessoas. Na verdade, no meu único critério: se lê, vale a pena, se não lê, não vale. Por que com ninguém mais aconteceu o que acontecia com você, Mieko, aquela surpresa praticamente todos os dias. Você foi a menos leitora das pessoas com quem me relacionei e no entanto nenhuma outra me impressionou tanto. Ainda penso muito sobre isso. Eu achava que você tinha uma relação intuitiva muito foda com o mundo, mas agora tô achando que é outra coisa. Agora penso que teu maior talento, na verdade o que te constitui, é uma capacidade doida de viver oblíqua ou paralelamente à realidade. Não consigo explicar isso de outra maneira. Explicar já é uma coisa aparentemente tão fora do teu universo de necessidades que tenho medo de que você desista deste email antes de chegar ao fim. Por favor, não desista. Ainda tenho umas coisas legais pra te falar. Mas é isso... oblíqua é uma palavra boa pra você. Sempre foi assim, o teu hedonismo e a tua despreocupação nunca exigiram mais do que essa obliquidade pra transitar pelo mundo. E dá certo! As coisas sempre aconteceram pra você. Agora você está em Amsterdã e, embora eu não goste disso, sou obrigado a concordar que a tua vida é uma escala ascendente. Uma vida com estilo e prazer... as pessoas querem fazer parte disso. Eu também queria. Já passei da fase da perplexidade quando penso a respeito. O meu erro foi sempre te colocar numa posição inferior à minha. Aí, claro, eu não entendia como um sujeito nutrido à boa literatura podia se deixar fascinar por uma guria como você. Uma fascinação para além da beleza. Embora você tenha sido a mais bonita de todas, não era só isso. Eu quis muito, embora não percebesse na época, me anular pra ser alguma coisa no teu universo. Me sinto um tanto ridículo falando isso agora, ainda mais quando lembro que faltam algumas coisas essenciais neste teu mundo. Literatura, por exemplo. É pena que você não goste de ler, senão te recomendaria um livro que ilustra bem o que quero dizer a teu respeito. Chama-se A Montanha Mágica. Nele tem um cara que vai pra uma montanha (a mágica), na Suíça, recuperar a saúde. Hans Castorp é o nome do personagem. Lá o carinha conhece várias pessoas, entre elas dois intelectuais que passam o tempo todo discutindo e tentando cooptá-lo. Um é humanista e o outro jesuíta. Mas não é isso o que interessa. Ele conhece também uma mulher pela qual se apaixona. Ela tem "olhos quirguizes" que lembram ao tal Hans os olhos de um colega de colégio. Uma coisa meio gay, o que não é de se estranhar, pois autor do livro era gay. Mas aí o cara se apaixona pela mulher e fica alucinado até que... chega o marido dela. Não, ele não se apaixona pelo marido. Não no sentido sexual, pelo menos. Acontece que o recém chegado é um homem excepcional, uma força da natureza. Ele se apaixona pela alegria e vitalidade do sujeito. O pobre Hans esquece completamente seus dois mentores intelectuais e também a moça dos olhos quirguizes. Você é isso, Mieko. Você é o meu Mynheer Peeperkorn (o marido). Só que você é a vitalidade do cara com a beleza da mulher. Eu poderia juntar todos os mentores intelectuais do mundo e não ia adiantar nada. Você é uma espécie de tiro de misericórdia na razão. A Júlia, dia desses, falou que você é uma energia telúrica. Mas logo discordaram dela. Eu discordo também. Você é ar... a mais aquariana das aquarianas. Por falar na Júlia, ela está muito mais na boa comigo. Toda a antipatia que ela sentia por mim parece ter desaparecido agora que você não está aqui. As vezes penso em perguntar se era só ciúmes, despeito por eu ter "roubado" sua doce namorada Mieko, mas acho que isso já não tem importância. Todos nós aceitamos o fato de que você se foi. Uma noite dessas quase ficamos juntos numa festa. Estávamos bêbados, claro. Na verdade a Júlia parecia um pouco mais do que bêbada. Ecstasy, eu acho. Faltou muito pouco para que acontecesse. Teria rolado se não fosse você, Mieko. Por que quando nos olhamos deu pra ver como se estivesse escrito, estávamos os dois buscando um último pedaço daquele mundo que era o teu. O resquício da Mieko em cada um de nós. Os dois patéticos, os dois sozinhos. Eu quis sair correndo, mas então a Júlia me abraçou. Me abraçou muito forte e eu também abracei. Ficamos assim um bom tempo no meio daquele monte de gente, no meio daquele monte de som. Entendi que naquele momento pelo menos não era mais você o que buscávamos, Mieko. Era a nós mesmos. É estranho como passei a gostar da Júlia a partir daquilo. Então dei um beijo no rosto dela e disse que ia buscar uma cerveja. Ela estava com olhos molhados. Enxugou com as costas das mãos e disse que já era a vez delas no palco. Foi um show memorável. Foi uma noite memorável. Você deve saber que a banda mudou de nome, não é? As gurias achavam (e com razão) que o antigo nome estava muito vinculado à tua imagem. Agora se chamam Penny Ladies e a Júlia assumiu o vocal. A nova baixista é muito boa. Veio de uma banda de jazz fusion, mas é a mais "rock and roll" das três. É muito bonita também. O som da banda tá mudando. As gurias estão migrando aos poucos pra uma coisa mais britpop (Penny Ladies...). Um britpop de primeira, aliás. Todas as resenhas que li até agora foram elogiosas. Escuta essa: "...trata-se do melhor power trio de Porto Alegre. A nova vocalista é carismática e competentíssima, quase nos faz esquecer a versatilidade da primeira vocalista da banda, uma nissei que incorporava no palco de Björk a Kate Pierson, passando por P. J. Harvey e Patti Smith, entre outras tão diferentes quanto interessantes". Essa é você. É de um site especializado, saiu há uns dois meses. Você está na Holanda há quase dois anos (faz tudo isso mesmo?) e ainda é citada por aqui. Enquanto isso tem gente se escabelando pra ter o nome em negrito na contracapa da Zero Hora. Falando em Holanda, li no jornal que os holandeses são o povo mais alto do mundo. Dez centímetros a mais do que a média dos norte-americanos e dos britânicos. E continuam crescendo. Fico pensando em você, Mieko, uma oriental pequena e delicada aí no meio destes gigantes. Mesmo o Senhor Imitação de Nick Cave deve ser baixo perto dessa gente. Você ainda está com ele? Ok, ok... não vamos tocar neste assunto. Apenas me diga se o cara conseguiu cumprir a promessa de fazer vocês tocarem em Montreux. Se acontecer, não deixe de me avisar. Embarco pra Suíça no dia seguinte e vou pra Davos. Lá vou me internar na clínica da "montanha mágica" e aguardar uma visita tua, meu Mynheer Peeperkorn. Davos fica no lado oposto ao de Montreux, mas as distâncias na Europa são sempre tão facilmente superáveis, não são? Estarei lá te esperando, desde que não seja a época do Fórum Econômico Mundial. Isso foi uma piada, Mieko, mas você provavelmente não sabe o que é o Fórum Econômico Mundial, não é? Então esqueça, e me desculpe. Já me estendi demais, quero finalizar este email (extremamente longo para os teus padrões, mas espero que você ainda faça concessões para antigos namorados). Vou agora para o nosso bar. Talvez acabe conhecendo alguém interessante qualquer dia desses. Tanto quanto você? Duvido. Mas "este é um mundo de possibilidades infinitas", como diz o Beto. Acho que posso terminar este email exatamente como terminei os outros, já que no geral consegui me lamentar menos (ou você não concorda que o tom mudou?): volte, Mieko. Volte qualquer dia desses, assim sem avisar. Faça a mim e ao resto dos teus amigos a mais agradável das surpresas. Volte, não antes que te esqueçamos, por que isso é impossível, mas antes que a força das coisas sem a tua presença acabe por nos embotar. Volte antes que parem de chamar o nosso bar de "o bar de vocês". Volte antes que os resenhistas esqueçam da japinha baixista/vocalista que matava a pau no palco. Volte antes que eu e Júlia paremos de procurar você um no outro. Volte antes que eu pare de elaborar teorias a teu respeito. Simplesmente volte, Mieko. Volte antes que tudo acabe.
Do sempre seu
Telmo.
segunda-feira, 1 de março de 2010
Mieko
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6 comentários:
Cara!
Indescritivel.
É tão idiota da minha parte ficar sem palavras para falar deste teu texto. Me sinto tão..
Arrebentou, Telmo.
Maravilhoso.
Parabens, mesmo!
Não sei da Mieko, mas eu já aguardo a leitura do próximo e-mail. Será enviado por ti, ou uma resposta da bela?
Caraio, falou mais que o homem da cobra...
Muito bom, em tempos de tantos erros de portuga e tal nos blogs da vida, você é um orgulho.
Jorge
Nossa, fiquei sem fôlego! Adorei o texto, fiquei assim, não querendo que acabasse. Mesmo!
Bj,
Ray
Agora sim!!! Eu sempre ia no velho "A prancheta do guerreiro" e dava comos burros n´água. Bem, agora eu já sei onde ver o talento do amigo.
Muy bueno, hombre!
Adorei! So sweet, so... you!
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