Eu sou um chato. Em alguns aspectos acho que também posso
ser considerado um straight-edge. Não gosto de muitas coisas que fazem o
deleite das pessoas em geral. Mas, vejam bem, eu não sou chato porque não gosto
destas coisas, eu sou chato porque não faço questão alguma de esconder que não
gosto delas. Claro, não sou hipócrita. Se me chamam pra briga, eu vou. Na
verdade, às vezes vou pra briga até sem me chamarem. Como eu disse, sou um
chato. Moralista e doutrinador. Dono da verdade. Prazer! É que algumas coisas -
aquelas que dizem respeito à justiça e à humanização - considero importantes
demais pra não discutir.
A maioria das pessoas é burra, pusilânime, hipócrita e sofre
de uma “fraqueza da vontade”, então não é difícil me encontrar brigando. Vivo
na contramão. Tento ser lúcido, racional e ético enquanto o resto da galera se
comporta como marionetes. Aceitam um condicionamento e agem todos da mesma
maneira. É uma massa imbecilizada que se auto avaliza, dentro dela cada um é
respaldado pelo outro. “Se todo mundo faz assim, então deve estar certo”. Eles
não percebem que é exatamente o contrário. E se percebem, não fazem força pra
mudar, afinal, “do jeito que tá, tá bom”. Mas bom pra quem, porra? Porque esse
“bom” muitas vezes é ruim pra outro alguém e, geralmente, danoso pro planeta.
Eles aplicam a Lei de Gerson (levar vantagem em tudo), eles fazem qualquer
coisa em nome dos seus prazeres irresponsáveis, eles não querem soluções
difíceis (que envolvam o seu aprimoramento como seres humanos – não, eles
querem os atalhos) e, decididamente, eles não querem pensar. A maioria vai
conseguir transformar a massa cinzenta numa gelatina antes dos 20 anos de idade
e, depois, seguir a vida ao sabor da turba de acéfalos. É um corpo só, um
movimento só.
Buenas... fiz uma lista das coisas que vêm me incomodando
muito nos últimos tempos. Algumas bem sérias e profundas (Deus, por exemplo) e
outras aparentemente sem importância (cartões de débito/crédito, por exemplo).
Comecei com 7 itens, mas fui lembrando de outros e fechei em 12. Claro que a
lista dos meus desgostos é bem maior do que isso. O apanhado aqui é meio
genérico e diz respeito à vida moderna na cidade grande (na grande e
provinciana Porto Alegre, nesse caso). Deixei de fora a política (assunto
importante pra caramba, mas que não tenho mais saco nem competência pra
discutir) e vários outros temas – talvez mais pertinentes – porque minha
intenção é discorrer somente sobre coisas com as quais bato de frente quase
todos os dias.
Nem todas essas coisas me irritam. Algumas me deixam
perplexo. De qualquer maneira, gostaria que todas desaparecessem da face da
terra para que a vida dos seres humanos se tornasse melhor. Minha intenção era
escrever sobre os 12 tópicos de uma vez, mas quando comecei a empreitada, vi
que alguns assuntos vão longe e precisam ser tratados com mais cuidado do que
outros. Então vou escrever aos poucos, um tema de cada vez.
O primeiro:
FUTEBOL – Este é um assunto do tipo que me deixa
perplexo. Acho que futebol é, numa primeira olhada, coisa de gente estúpida.
Ópio do povo, pra usar um clichê bem aplicado. Só que tenho amigos bem
inteligentes (alguns dos mais racionais) que, entra ano, sai ano, não deixam de
torcer pelo “time do coração”. Tive também um professor de filosofia que
gostava de dizer que era um adepto da razão, mas que quando ia ao estádio se
transformava num torcedor fanático, do tipo que xinga a mãe do juiz, entre
outras descomposturas. Então, porque levo fé nessa gente, quero dizer que minha
opinião sobre futebol ainda tem uma margem de perplexidade. Gostaria que alguém
me dissesse o que, afinal de contas, eu estou ignorando. Enquanto ninguém fizer
isso, vou continuar repassando meus argumentos atrás de alguma falha, mas
também alimentando gradativamente a suspeita de que talvez esteja
superestimando meus amigos.
Começando pelo começo, o que faz alguém escolher um time em
detrimento de outro? Geralmente é uma coisa de família. O pai é gremista, então
já vai incutindo na cabecinha do filho que o “timão” é que é o bom. Na verdade
começam com isso ainda antes de a criança nascer, comprando roupinhas,
toalhinhas e toda uma variedade de produtos com as cores e o símbolo do time. A
criança não tem escolha (embora, se tivesse, não fizesse muita diferença). O
futebol, muitas vezes, é uma das coisas mais agregadoras de uma célula
familiar. Haverá quem ache isso muito bonito, mas na verdade é muito triste. Se
você não consegue ver que as razões para manter uma família unida deveriam ser
outras, então nem continue lendo este texto. O time vira uma espécie de
definidor da personalidade do sujeito, mas é uma definição pra lá de suspeita
(tenho amigos colorados que não se cansam de dizer que o Inter é “o time do
povo” e que o Grêmio é um time de “elites”, não importando o quão anacrônico e
disparatado isso soe). Eles vão pro estádio e se sentem irmanados. Não faz mal
que o cara ao lado, berrando feliz, possa ser o mesmo que amanhã vai provocar
uma briga no trânsito ou votar no partido de oposição ao que eles votam. Por
que importaria? Eles não se incomodam nem mesmo de torcer por um atleta que
ainda ontem, quando jogava no time adversário, odiavam. Essa é uma das minhas
principais broncas com o futebol. O que vem a ser um time? O que define um
clube? Teria de haver alguma coisa fixa nesse objeto eleito, algo que o
diferenciasse de outro e que justificasse a escolha. Eu tento, mas não
consigo identificar. Pra mim, parecem todos iguais. Não pode ser os jogadores,
pois esses vivem pulando de uma equipe pra outra. É então a história do clube?
Mas a história antiga ou a recente? A história recente ainda confirma a antiga?
Quem sabe trata-se do número de vitórias e títulos conquistados? Algo assim
justificaria uma crença na superioridade deste clube. Ao longo dos anos, tendo
passado dezenas destes campeonatos estúpidos e repetitivos (futebol é uma novela dos
homens), um ou outro clube certamente tem mais proezas pra contar, mais troféus
pra exibir e, talvez, mais dinheiro em caixa. Mas quando o pequeno futuro
fanático está lá sofrendo a lavagem cerebral por parte dos pais, não tem
condições de avaliar este tipo de coisa. Então, supondo que exista um time
“certo” a escolher, o cara cujo pai estava errado vai ter que arcar pro resto
da vida com o peso de uma escolha que não fez? A pergunta talvez seja: ele tem
culpa de torcer pro time “errado”? Bobagem! Ninguém jamais vai se fazer esta
pergunta. Todo mundo “ama” o seu time. Eles às vezes sofrem, é certo, mas não
pensam em trocar de camiseta. Na verdade, é graças a essas escolhas infundadas
que existem as rivalidades, e graças às rivalidades que o futebol permanece uma
insanidade coletiva.
No final das contas é só mais uma afirmação vazia de
personalidade. Como os bairrismos. Orgulho de ser gaúcho. Orgulho disso.
Orgulho daquilo. Orgulho de coisas sobre as quais o sujeito não teve
participação. O que é isso? Orgulho de ter nascido em determinado lugar sob
determinadas circunstâncias? A verdade é que se o cara tivesse nascido na
Etiópia e o seu clube tivesse o nível do Íbis, provavelmente sentiria orgulho
disso também. Por que seria o seu quintal, e as pessoas (em geral) não
conseguem jamais sair do seu quadrado. Pense nisso, meu caro fanático (gremista
ou colorado): se você tivesse nascido no Rio de Janeiro, seu time do coração
seria o Flamengo, ou o Fluminense, ou o Botafogo, etc. O que você faria com
este discursozinho a respeito das qualidades do seu time? Você teria crescido
aprendendo a amar o “mengão”! Todas essa papagaiada sobre “raça”, “tradição” e
outras bobagens (subjetivas e fantasiosas) que hoje você acha que são
exclusividade do seu time, seria simplesmente canalizada pra um outro brasão.
Ou seja, toda a “verdade” sobre o seu time não passa de auto-sugestão e/ou
propaganda sistemática.
Não existe um valor absoluto num time. É apenas uma projeção
surgida em circunstâncias específicas. O torcedor do Grêmio é igual ao do
Corinthians que é igual ao do Cruzeiro que é igual ao do Vitória, etc, etc,
etc. Mas quando eles entram num estádio, cada um se sente o mais “escolhido de
Deus”. Isso é tão verdade que se vê na retórica dos jogadores: “... se deus
ajudar”, “... deus nos ajudou” e por aí vai. O torcedor mais culto certamente
percebe o absurdo disso, mas não vê que é igualmente estúpida a sua vontade de
ter confirmada a supremacia do seu time. Se o meu time ganha, isso significa o
que? Que os meus jogadores (que amanhã estarão na Europa) são melhores? Que o
meu técnico (que amanhã vai pra outro clube) foi mais esperto que os outros? Ou
que foi um “desígnio maior”, a vontade de deus? Peraí, deus nós já
descartamos... ficam então as outras causas, ambas circunstanciais, obras de
uma confluência enorme de fatores que nada (ou apenas por causalidade) têm a
ver com aquilo que eu acho que define o meu time. Então, se ele ganha,
significa apenas que o objeto no qual eu escolhi projetar minha paixão se deu
bem desta vez. Só isso. Amanhã vou projetar essa paixão de novo e posso ter
minhas expectativas frustradas. Isso vai acontecer, ou não, independente de mim
e das qualidades que eu atribuo ao time. O resto são coincidências que
alimentam as mais esdrúxulas crenças e superstições.
E tem o monte de merdas que acontecem graças ao futebol. Não
tenho a menor dúvida de que a invenção do Sr. Charles Miller é um perpetuador
de injustiças. Acredito que muitas pessoas percebem a irracionalidade do
futebol e continuam na “brincadeira” porque é necessário, afinal de contas,
canalizar e extravasar a paixão. É tudo muito grande, a emoção deve ser
intensa. Buenas, se a coisa ficasse só nisso, tudo bem. Mas novamente (e
sempre) caímos na questão ética: que direito têm as pessoas a um prazer que,
numa análise mais profunda, traz mais prejuízos do que benefícios ao mundo?
Você pode até discordar disso. Pode acreditar que são mais benefícios do que prejuízos,
mas ainda assim, que direito tem qualquer coisa de causar qualquer prejuízo?
Perguntem pro prejudicado.
Discussão delicada essa, mas podemos colocar deste modo: eu
tenho o direito de dizimar uma vila com 300 pessoas para que sobreviva uma
cidade com 300 mil? Isso sim é um dilema ético. Um negócio que “apaixona” o
mundo inteiro certamente deve ter seus pontos positivos, mas só o processo de
alienação das pessoas, no qual o futebol é um dos maiores agentes, já serviria
como argumento irrefutável pra sua condenação. Mostre-me um sujeito inteligente
e crítico que gosta de futebol, que eu mostro milhares de pessoas embotadas,
embrutecidas e incapazes de pensar. A culpa é do futebol? Sim. Não só dele, mas
é. O futebol, depois da religião, é o maior dos fenômenos de massas (isto é uma ilação minha, mas se não for assim, deve ser quase isso). Uma coisa
tão grande pressupõe grandes responsabilidades. Mas, assim como na religião,
elas são sempre negligenciadas em prol dos interesses de uma gente graúda, e
provavelmente amoral, que manda no mundo.
Ainda sobre as merdas, vamos falar de violência. Eu quero
que o meu time vença! Tá, mas qual a razão deste querer? O que eu ganho com
isso? Eu sei: uma alegria. Uma alegria que se torna maior porque é coletiva.
Beleza. Mas e o derrotado? E a tristeza do torcedor perdedor? Será que no final
das contas é isso: eu me sinto feliz apesar da (ou pior: com) a tristeza do
outro? Claro que sim, pois quando eu estou lá, aqueles caras no outro lado das
arquibancadas são meus inimigos mortais. Eu quero vencê-los, humilhá-los,
tripudiá-los. E se der briga, sou capaz de matar um. Talvez me redima o fato de
que a recíproca é verdadeira. Enfim, somos todos bárbaros, nós, amantes do
futebol. Ah, você não é assim? Isso é coisa de torcida organizada? E ainda
assim, não de todas? Hum... talvez você queira dizer que isto é outra coisa
bonita do futebol, tem gente de todos os estratos sociais por lá. E de todos os
tipos. Buenas, voltamos à questão lá de cima: se o futebol é um fenômeno que
propicia (e estimula) também as manifestações violentas, que direito tem você
de dar corpo a esse fenômeno? Ah, os outros – os briguentos – é que não têm o
direito de estragar o seu prazer? Talvez você tenha razão. No dia em o mundo
for perfeito (sim, por que a violência que se manifesta no estádio tem suas
origens em outros lugares), você poderá se deleitar mais tranquilamente. Até
lá, continue levando sua mulher e o seu filho pro estádio para que eles possam
ouvir coisas bonitas como essa: Atirei o pau no inter/e mandei toma no cu/Macacada filha da puta/chupa rola e dá o cu/Hei! Inter vai toma no cu!!!
As TVs, auxiliadas pelos seus comentaristas semi-acéfalos de
futebol (gostaria de saber quantos - e quais - livros esses caras leram no último ano),
adoram mostrar mulheres, crianças, famílias inteiras nas arquibancadas. Tipo:
futebol é uma coisa bonita, que envolve toda a gente. Buenas, o natal, as
novelas, os passeios no shopping e mais um monte de bobagens também envolvem
toda a família e estão longe de ser coisas positivas. O fato de estar lá um
grupo inteiro em vez de um cara só, apenas demonstra o quão feroz é o processo
de alienação que as TVs promovem. Não é difícil ver que se trata,
principalmente, de negócios. Os clubes de futebol (assim como as igrejas) são
empresas. Os clubes de futebol e as TVs são parceiros comerciais. E é o seu
dinheiro que faz estas engrenagens funcionarem.
Resumindo, o futebol pertence à categoria dos prazeres
irresponsáveis. Ele nada mais é do que o objeto no qual milhões de indivíduos
projetam o seu potencial de paixão. Uma projeção que já seria grave pelo que
tem de irracional, mas que fica ainda pior porque perpetua injustiças. Não
citei neste texto os salários estratosféricos que os jogadores recebem (mais os
bichos e a grana do merchandising), não falei das suas inteligências rasas e do
seu comportamento cada vez mais mercenário, não comentei as falcatruas que vez
ou outra se descobre orquestradas pelos cartolas, não mencionei as arbitragens e
os seus erros (intencionais ou não), não critiquei diretamente as consequências
do culto a uma “pátria de chuteiras”, não escrevi enfim, sobre muitas facetas
negativas do futebol. Seria preciso um livro pra tratar devidamente do assunto.
Mas acho que consegui externar satisfatoriamente a minha perplexidade. Não para
com o povão (porque deste eu sinto pena – e muitas vezes raiva - mas não espero
nada), mas sim para com os meus amigos e pessoas tidas como intelectuais (Chico
Buarque, por exemplo) que gostam de futebol.
Sempre penso neles quando recordo
a opinião do Borges sobre o esporte: “o futebol é popular porque a estupidez é
popular”.
Um comentário:
“Me interessa saber que ser humano se esconde atrás de toda esta fachada. Não pode não haver nada.”
(Vera Albers em Surtos urbanos)
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