Dia desses, por acaso, descobri que os livros foram
reeditados. Dei uma bisbilhotada na internet e constatei que estas reedições
não repetem alguns dos entrevistados que li. Philip Roth e Henry Miller, por
exemplo. Além desses, não consta na capa de nenhum dos calhamaços o nome de
Blaise Cendrars, certamente a entrevista que me ficou mais vívida na lembrança.
Buenas, desconfiei que em algum recôndito deste vasto universo chamado internet
haveria uma reprodução daquela entrevista e fui atrás. Não foi preciso procurar
muito, digitei as palavras-chave e já no primeiro link... voilá, eis a relíquia.
Apesar de alguns erros de digitação (e/ou ortografia), ela está neste endereço, para quem quiser conferir.
Blaise Cendrars foi um escritor/poeta (entre várias outras
coisas) da primeira metade do século passado que influenciou muita gente (seu
amigo Apollinaire, por exemplo) e teve uma vida agitada e prolífica. Viveu
um tempo no Brasil - que considerava como sua segunda pátria espiritual - e foi
amigo dos modernistas. Segundo resenha do site da Companhia das Letras, parte
do seu livro Morravagin foi escrito por aqui. Eu tenho duas edições desta obra.
Uma, da editora Ulisseia, de Portugal, reproduz o título original, “Moravagine”,
mas não tem o complemento que vale o subtítulo da edição brasileira: “O Fim do
Mundo Filmado Pelo Anjo Notre-Dame”. Há algum tempo tentei ler, mas a coisa não
fluiu, achei chato (mesmo experimentando ora uma, ora outra edição). Talvez
venha a reencetar a leitura, mas o que importa aqui não é a obra e sim a vida e
o pensamento deste sujeito, Blaise Cendrars. Ou melhor dizendo, a obra importa
sim, mas aqui, neste meu pequeno apanhado, só no contexto da significação que
ela teve para o próprio autor. É muito maluca, excêntrica ou absolutamente
implacável talvez a maneira como esse escritor lidou com a literatura, com a
arte e com a sua própria produção.
Para atiçar as curiosidades, separei uns trechos mais
interessantes abaixo (o que foi difícil, pois a entrevista é toda muito boa).
- Todos os
escritores se queixam das restrições sob as quais trabalham e da dificuldade de
escrever.
Para se
tornarem interessantes; e exageram. Deviam falar um pouco mais dos seus
privilégios e da sorte que têm em poder receber algum retorno financeiro pela
prática de sua arte, uma prática que pessoalmente detesto, é verdade, mas que,
de qualquer forma, é um nobre privilégio, comparado com a sina da maioria das
pessoas, que vive como parte de uma máquina, que vive só para manter os eixos
da sociedade girando inutilmente. Sinto pena delas, de todo o coração. Desde
que voltei a Paris, venho me entristecendo como nunca diante da multidão
anônima que vejo da janela, se aglomerando metrô adentro ou jorrando do metrô,
em horários fixos. Falando sério, aquilo não é vida. Não é humano. Tem que ter
um fim. E escravidão... não só para os pobres e humildes, mas o absurdo da vida
em geral.
Quando uma
pessoa simples como eu, que acredita na vida moderna, que admira todas essas
fábricas bonitas, todas essas máquinas sofisticadas, pára e pensa aonde tudo
isso leva, não pode fazer outra coisa a não ser condenar esse tipo de vida
porque, realmente, não é bem o que se chamaria de encorajador.
- E seus hábitos
de trabalho? Disse uma vez que se levanta de madrugada e trabalha horas a fio.
Nunca
esqueço que o trabalho é uma praga - e, exatamente por isso, jamais fiz dele um
hábito... ...Não tenho nenhum método de trabalho. Experimentei um, funcionou,
mas isso não é motivo para me ater a ele pelo resto da vida. Tenho mais o que
fazer na vida, além de escrever livros.
- Onde começou seu interesse por
literatura folclórica?
...Devo a
Gérard de Nerval meu amor à música e à poesia populares e, em todos os países
do mundo, procurei ouvir, anotar e ler alguma coisa da música, poesia e da
literatura do povo, em especial na Rússia, China e Brasil... ...Se a literatura
de cordel está um pouco fora de moda em Paris, em um país como Brasil (que é um
país novo, tudo parece novo para ele), camadas inteiras da população, que mal
aprenderam a ler, estão descobrindo essas histórias de bruxarias, lobisomem.
mula-sem-cabeça, fantasmas, humor negro, romance, contos de fada, novelas
de cavalaria, contos infantis, aventuras de bandoleiros e célebres crimes
passionais; um repertório de maravilhas que não é mais banal e medíocre em si
do que, em países muito mais avançados, as novelas policiais da Inglaterra, as
histórias de gângsters dos Estados Unidos e os grandes filmes de amor nos
cinemas do mundo inteiro, que também fazem parte das antigas tradições do
folclore, da literatura popular.
- Mas no Brasil esse folclore não é
inteiramente herdado dos negros?
De forma
alguma. O folclore literário é de origem portuguesa. A literatura de cordel foi
importada de Portugal...
- Mas os negros que foram levados
para lá, eles escreviam?
Os negros
levados para lá - quer dizer, os escravos - não escreviam. Eram proibidos de
escrever e foi algo completamente excepcional o fato de alguns conseguirem
aprender a ler ou escrever. Mais ainda, era proibido imprimir livros no Brasil,
vinha tudo de Portugal. A primeira máquina impressora só foi instalada em 1818
no Rio de Janeiro, durante o império. Assim, as Obras completas de
Gregório de Matos (1633-96), chamado, com toda a razão, de o François Villon do
Brasil e a quem seus contemporâneos chamavam de Boca do inferno, tamanha a
violência de suas sátiras à sociedade colonial, não foram publicadas no Rio até
1882, Até então, tinham sido transmitidas por tradição oral e por cópias
manuscritas, que circulavam em um determinado grupo da sociedade brasileira: os
boêmios da Bahia.
- Ele era negro?
Não, no
máximo, bastante moreno, um mestiço, um pardo, como dizem por lá... ...Ele teve
a sorte de ser enviado a Coimbra para estudar Direito... ...Quando voltou à
Bahia, sua boca maldita e invectivas infernais custaram a ele uma temporada em
Angola, no exílio, de onde voltou, mais enfurecido do que nunca, para se fixar
em Pernambuco, em regime de prisão domiciliar. Ao invés de se emendar, levou
uma vida de embriaguez e devassidão com as garotas negras da beira do cais,
Todas as suas canções de amor, algumas realmente muito bonitas, celebram a
Vênus negra. Ele morreu na miséria. Diz a tradição que foi
enterrado como o mais miserável entre os miseráveis, com o violão, seu único
bem.
- Quando fugiu de casa, com quinze
anos, o senhor havia planejado sua fuga? Tinha algum objetivo ou alguma
esperança de voltar?
Eu sei lá.
Fui para o leste porque o primeiro trem que passou na estação me levou para o
leste; se fosse um trem indo para o oeste, eu teria chegado em Lisboa e seguido
para a América em vez da Ásia.
- ...por que não
continuou a experiência que havia começado com Pâques à New York,
Transsibérien e Panama...
Em 1917 eu
havia acabado de escrever um poema que me espantava pela plenitude de sua
modernidade, por tudo que eu havia colocado nele. Era tão antipoético! Fiquei
encantado. E, naquele exato momento, decidi não publicá-lo, para deixar a
poesia moderna seguir seu caminho sem mim, para ver o que aconteceria. Guardei
o poema não publicado em uma caixa no sótão da casa de campo; e dei a mim mesmo
um prazo de 10 anos antes de publicá-lo. Isso foi há mais de trinta unos, e acho
que ainda não chegou a hora de publicar esse poema.
- O senhor era mais alegre porque a
vida era mais divertida nos bons e velhos tempos?
Meu caro
amigo, na Belle Époque, escritores ganhavam um sou por linha nos
jornais e um Apollinaire teve que esperar meses, anos, antes que pudesse
assinar seus artigos e contar com um emprego estável, com pagamento regular.
Por isso ele ele escrevia pornografia... ...Antes de 1914, aqueles que queriam
um emprego faziam fila na porta, ou guichê de um balcão de empregos que nunca
se abria... ...Para o inferno com o emprego e a vida decente. Nós dávamos
risada. As garotas de Paris eram bonitas.
- O senhor anunciou trinta e três
livros para o futuro. Por que trinta e três?
A lista de
trinta e três livros, que venho anunciando há quarenta anos, não é exclusiva,
restritiva ou proibitiva; o número trinta e três é o número-chave da atividade,
da vida... ...Não incluí nela os títulos dos romances que nunca escreverei...
...Também encontram-se relacionados os dez volumes de Notre pain quotidien,
que já estão escritos, mas que deixei em diversas caixas-fortes em bancos da
América do Sul e que, se Deus quiser, serão encontrados por acaso algum dia -
os papéis não estão assinados e foram depositados com um nome falso. Também
incluí um grupo de poemas que amo mais do que os meus próprios olhos mas que
não me decidi a publicar - não por timidez ou orgulho, mas por amor. E tem os
livros que estavam escritos, prontos para publicação, mas que eu queimei para a
infinita tristeza de meus editores: por exemplo, La vie et Ia mort du
soldat inconnu, em cinco volumes. E, por fim, há os bastardos, as larvas e
os abortos que provavelmente nunca virei a escrever.
- Conhecia Sinclair Lewis também,
não é?
...Ele me
mandou um recado dizendo que precisava me encontrar urgentemente. Pedi-lhe que
viesse ao estúdio, mas ele me disse que estava resfriado, não gostava de filmes
e que, de qualquer forma, não tinha tempo, porque partia para Estocolmo na
manhã seguinte, para receber o Prêmio Nobel... ...A porta do banheiro estava
entreaberta e a água quente corria pelo corredor. Entrei. A banheira estava
transbordando e as torneiras abertas ao máximo. Dois pés, ostentando sapatos
finos, novíssimos, pendiam para fora da banheira e, no fundo, um homem de
smoking estava se afogando. Foi esse o Sinclair Lewis que conheci. Puxei-o para
fora, tirando-o daquela posição infeliz e foi assim que salvei sua vida...
No dia
seguinte eu o coloquei no trem - ele nem sequer me pagou um drinque. É verdade
que estava com uma ressaca e tanto, e que provavelmente não queria saber de
bebida, ou, talvez, tivesse feito um juramento de nunca mais beber. Mas
promessa de bêbado não vale nada, você sabe.
- Não disse uma vez que se
fortalece no amor e na solidão?
Na verdade,
os artistas vivem ao lado, à margem da vida e da humanidade; é por isso que são
grandes demais ou pequenos demais.
- À margem da humanidade? Então não
se considera um artista?
Não. Já tive
trinta e seis profissões e estou pronto para começar outra coisa inteiramente
diferente amanhã mesmo.
- E qual a sua opinião sobre
Jean-Paul Sartre?
...Existencialismo?
Quanto à doutrina filosófica, foi Schopenhauer quem, nos colocou em guarda
contra os professores de filosofia que, depois de completar seus estudos
formais, meditam, escrevem, pensam, rabiscam manifestos - e Sartre é um
professor... ...Os escritores jovens de hoje - encontrei muitos deles desde
minha volta a Paris e me pergunto o que os torna especificamente
existencialistas. Será por que eles se disfarçam toda noite para ir a
Saint-Germain-des-Pres da mesma maneira que seus pais se vestiam toda noite
para freqüentar a sociedade ou ir ao clube? Isso é um modismo que vai passar,
que já passou. Não me deixo levar pelo barulho de um desfile. Mas o mundo se
entedia consigo mesmo. O cinema, o radio, a televisão... A verdade é que
muito poucas pessoas sabem viver e aquelas que aceitam a vida como ela é são
ainda mais raras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário