terça-feira, 25 de setembro de 2012

Blaise Cendrars

Há alguns anos eu morava com meu amigo Jéferson Assumção, e como a biblioteca dele era pelo menos cinco vezes maior que a minha, volta e meia eu tomava algum dos seus livros emprestado. Uma vez passei a mão num volume de entrevistas. Negócio fino, conversas com Borges, Faulkner, Céline, Ezra Pound, T. S. Eliot, Nabokov e outros de igual calibre. Chamava-se “Os Escritores – As Históricas Entrevistas da Paris Review”, Companhia das Letras. Não me recordo se era o primeiro ou o segundo volume – saiu um em 1988 e o outro no ano seguinte -, mas lembro de ter lido quase todas as entrevistas.

Dia desses, por acaso, descobri que os livros foram reeditados. Dei uma bisbilhotada na internet e constatei que estas reedições não repetem alguns dos entrevistados que li. Philip Roth e Henry Miller, por exemplo. Além desses, não consta na capa de nenhum dos calhamaços o nome de Blaise Cendrars, certamente a entrevista que me ficou mais vívida na lembrança. Buenas, desconfiei que em algum recôndito deste vasto universo chamado internet haveria uma reprodução daquela entrevista e fui atrás. Não foi preciso procurar muito, digitei as palavras-chave e já no primeiro link... voilá, eis a relíquia. Apesar de alguns erros de digitação (e/ou ortografia), ela está neste endereço, para quem quiser conferir.
Blaise Cendrars foi um escritor/poeta (entre várias outras coisas) da primeira metade do século passado que influenciou muita gente (seu amigo Apollinaire, por exemplo) e teve uma vida agitada e prolífica. Viveu um tempo no Brasil - que considerava como sua segunda pátria espiritual - e foi amigo dos modernistas. Segundo resenha do site da Companhia das Letras, parte do seu livro Morravagin foi escrito por aqui. Eu tenho duas edições desta obra. Uma, da editora Ulisseia, de Portugal, reproduz o título original, “Moravagine”, mas não tem o complemento que vale o subtítulo da edição brasileira: “O Fim do Mundo Filmado Pelo Anjo Notre-Dame”. Há algum tempo tentei ler, mas a coisa não fluiu, achei chato (mesmo experimentando ora uma, ora outra edição). Talvez venha a reencetar a leitura, mas o que importa aqui não é a obra e sim a vida e o pensamento deste sujeito, Blaise Cendrars. Ou melhor dizendo, a obra importa sim, mas aqui, neste meu pequeno apanhado, só no contexto da significação que ela teve para o próprio autor. É muito maluca, excêntrica ou absolutamente implacável talvez a maneira como esse escritor lidou com a literatura, com a arte e com a sua própria produção.
Para atiçar as curiosidades, separei uns trechos mais interessantes abaixo (o que foi difícil, pois a entrevista é toda muito boa).

- Todos os escritores se queixam das restrições sob as quais trabalham e da dificuldade de escrever.

Para se tornarem interessantes; e exageram. Deviam falar um pouco mais dos seus privilégios e da sorte que têm em poder receber algum retorno financeiro pela prática de sua arte, uma prática que pessoalmente detesto, é verdade, mas que, de qualquer forma, é um nobre privilégio, comparado com a sina da maioria das pessoas, que vive como parte de uma máquina, que vive só para manter os eixos da sociedade girando inutilmente. Sinto pena delas, de todo o coração. Desde que voltei a Paris, venho me entristecendo como nunca diante da multidão anônima que vejo da janela, se aglomerando metrô adentro ou jorrando do metrô, em horários fixos. Falando sério, aquilo não é vida. Não é humano. Tem que ter um fim. E escravidão... não só para os pobres e humildes, mas o absurdo da vida em geral.
Quando uma pessoa simples como eu, que acredita na vida moderna, que admira todas essas fábricas bonitas, todas essas máquinas sofisticadas, pára e pensa aonde tudo isso leva, não pode fazer outra coisa a não ser condenar esse tipo de vida porque, realmente, não é bem o que se chamaria de encorajador.

- E seus hábitos de trabalho? Disse uma vez que se levanta de madrugada e trabalha horas a fio.

Nunca esqueço que o trabalho é uma praga - e, exatamente por isso, jamais fiz dele um hábito... ...Não tenho nenhum método de trabalho. Experimentei um, funcionou, mas isso não é motivo para me ater a ele pelo resto da vida. Tenho mais o que fazer na vida, além de escrever livros.

- Onde começou seu interesse por literatura folclórica?

...Devo a Gérard de Nerval meu amor à música e à poesia populares e, em todos os países do mundo, procurei ouvir, anotar e ler alguma coisa da música, poesia e da literatura do povo, em especial na Rússia, China e Brasil... ...Se a literatura de cordel está um pouco fora de moda em Paris, em um país como Brasil (que é um país novo, tudo parece novo para ele), camadas inteiras da população, que mal aprenderam a ler, estão descobrindo essas histórias de bruxarias, lobisomem. mula-sem-cabeça, fantasmas, humor negro, romance, contos de fada, novelas  de cavalaria, contos infantis, aventuras de bandoleiros e célebres crimes passionais; um repertório de maravilhas que não é mais banal e medíocre em si do que, em países muito mais avançados, as novelas policiais da Inglaterra, as histórias de gângsters dos Estados Unidos e os grandes filmes de amor nos cinemas do mundo inteiro, que também fazem parte das antigas tradições do folclore, da literatura popular.

- Mas no Brasil esse folclore não é inteiramente herdado dos negros?

De forma alguma. O folclore literário é de origem portuguesa. A literatura de cordel foi importada de Portugal...

- Mas os negros que foram levados para lá, eles escreviam?

Os negros levados para lá - quer dizer, os escravos - não escreviam. Eram proibidos de escrever e foi algo completamente excepcional o fato de alguns conseguirem aprender a ler ou escrever. Mais ainda, era proibido imprimir livros no Brasil, vinha tudo de Portugal. A primeira máquina impressora só foi instalada em 1818 no Rio de Janeiro, durante o império. Assim, as Obras completas de Gregório de Matos (1633-96), chamado, com toda a razão, de o François Villon do Brasil e a quem seus contemporâneos chamavam de Boca do inferno, tamanha a violência de suas sátiras à sociedade colonial, não foram publicadas no Rio até 1882, Até então, tinham sido transmitidas por tradição oral e por cópias manuscritas, que circulavam em um determinado grupo da sociedade brasileira: os boêmios da Bahia.

- Ele era negro?

Não, no máximo, bastante moreno, um mestiço, um pardo, como dizem por lá... ...Ele teve a sorte de ser enviado a Coimbra para estudar Direito... ...Quando voltou à Bahia, sua boca maldita e invectivas infernais custaram a ele uma temporada em Angola, no exílio, de onde voltou, mais enfurecido do que nunca, para se fixar em Pernambuco, em regime de prisão domiciliar. Ao invés de se emendar, levou uma vida de embriaguez e devassidão com as garotas negras da beira do cais, Todas as suas canções de amor, algumas realmente muito bonitas, celebram a Vênus negra. Ele morreu na   miséria. Diz a tradição que foi enterrado como o mais miserável entre os miseráveis, com o violão, seu único bem.

- Quando fugiu de casa, com quinze anos, o senhor havia planejado sua fuga? Tinha algum objetivo ou alguma esperança de voltar?

Eu sei lá. Fui para o leste porque o primeiro trem que passou na estação me levou para o leste; se fosse um trem indo para o oeste, eu teria chegado em Lisboa e seguido para a América em vez da Ásia.

- ...por que não continuou a experiência que havia começado com Pâques à New York, Transsibérien e Panama...

Em 1917 eu havia acabado de escrever um poema que me espantava pela plenitude de sua modernidade, por tudo que eu havia colocado nele. Era tão antipoético! Fiquei encantado. E, naquele exato momento, decidi não publicá-lo, para deixar a poesia moderna seguir seu caminho sem mim, para ver o que aconteceria. Guardei o poema não publicado em uma caixa no sótão da casa de campo; e dei a mim mesmo um prazo de 10 anos antes de publicá-lo. Isso foi há mais de trinta unos, e acho que ainda não chegou a hora de publicar esse poema.

- O senhor era mais alegre porque a vida era mais divertida nos bons e velhos tempos?

Meu caro amigo, na Belle Époque, escritores ganhavam um sou por linha nos jornais e um Apollinaire teve que esperar meses, anos, antes que pudesse assinar seus artigos e contar com um emprego estável, com pagamento regular. Por isso ele ele escrevia pornografia... ...Antes de 1914, aqueles que queriam um emprego faziam fila na porta, ou guichê de um balcão de empregos que nunca se abria... ...Para o inferno com o emprego e a vida decente. Nós dávamos risada. As garotas de Paris eram bonitas.

- O senhor anunciou trinta e três livros para o futuro. Por que trinta e três?

A lista de trinta e três livros, que venho anunciando há quarenta anos, não é exclusiva, restritiva ou proibitiva; o número trinta e três é o número-chave da atividade, da vida... ...Não incluí nela os títulos dos romances que nunca escreverei... ...Também encontram-se relacionados os dez volumes de Notre pain quotidien, que já estão escritos, mas que deixei em diversas caixas-fortes em bancos da América do Sul e que, se Deus quiser, serão encontrados por acaso algum dia - os papéis não estão assinados e foram depositados com um nome falso. Também incluí um grupo de poemas que amo mais do que os meus próprios olhos mas que não me decidi a publicar - não por timidez ou orgulho, mas por amor. E tem os livros que estavam escritos, prontos para publicação, mas que eu queimei para a infinita tristeza de meus editores: por exemplo, La vie et Ia mort du soldat inconnu, em cinco volumes. E, por fim, há os bastardos, as larvas e os abortos que provavelmente nunca virei a escrever.

- Conhecia Sinclair Lewis também, não é?

...Ele me mandou um recado dizendo que precisava me encontrar urgentemente. Pedi-lhe que viesse ao estúdio, mas ele me disse que estava resfriado, não gostava de filmes e que, de qualquer forma, não tinha tempo, porque partia para Estocolmo na manhã seguinte, para receber o Prêmio Nobel... ...A porta do banheiro estava entreaberta e a água quente corria pelo corredor. Entrei. A banheira estava transbordando e as torneiras abertas ao máximo. Dois pés, ostentando sapatos finos, novíssimos, pendiam para fora da banheira e, no fundo, um homem de smoking estava se afogando. Foi esse o Sinclair Lewis que conheci. Puxei-o para fora, tirando-o daquela posição infeliz e foi assim que salvei sua vida...
 No dia seguinte eu o coloquei no trem - ele nem sequer me pagou um drinque. É verdade que estava com uma ressaca e tanto, e que provavelmente não queria saber de bebida, ou, talvez, tivesse feito um juramento de nunca mais beber.  Mas promessa de bêbado não vale nada, você sabe.

- Não disse uma vez que se fortalece no amor e na solidão?

Na verdade, os artistas vivem ao lado, à margem da vida e da humanidade; é por isso que são grandes demais ou pequenos demais.

- À margem da humanidade? Então não se considera um artista?  

Não. Já tive trinta e seis profissões e estou pronto para começar outra coisa inteiramente diferente amanhã mesmo.

- E qual a sua opinião sobre Jean-Paul Sartre?

...Existencialismo? Quanto à doutrina filosófica, foi Schopenhauer quem, nos colocou em guarda contra os professores de filosofia que, depois de completar seus estudos formais, meditam, escrevem, pensam, rabiscam mani­festos - e Sartre é um professor... ...Os escritores jovens de hoje - encontrei muitos deles desde minha volta a Paris e me pergunto o que os torna especificamente existencialistas. Será por que eles se disfarçam toda noite para ir a Saint-Germain-des-Pres da mesma maneira que seus pais se vestiam toda noite para freqüentar a sociedade ou ir ao clube? Isso é um modismo que vai passar, que já passou. Não me deixo levar pelo barulho de um desfile. Mas o mundo se entedia consigo mesmo. O cinema, o radio, a televisão...  A verdade é que muito poucas pessoas sabem viver e aquelas que aceitam a vida como ela é são ainda mais raras.

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