sábado, 12 de abril de 2014

Um bom filme

Assisti ontem o filme “Her”, do Spike Jonze. A história de um cara (Joaquin Phoenix) que se apaixona por um sistema operacional, uma inteligência artificial que evolui a partir da experiência com o usuário e se manifesta exclusivamente através do som (a voz é da Scarlett Johansson, e creiam, isso ajudaria até aos mais críticos se apaixonarem por uma “máquina”). Achei o filme muito foda (“muito foda” é o meu jeito de dizer “bonito” sem parecer meio gay). Gostaria de comentar sobre a coisa, então já aviso que não tem como fazer isso bem sem contar o final (“spoilers”).  Na verdade, não vejo grande mal em saber o fim de uma história de antemão. Quando li Madame Bovary e Os Irmãos Karamázov, passei antes pelos geniais prefácios do Otto Maria Carpeaux e isso em nada diminuiu a fruição do texto. Pelo contrário, apurou o meu olhar para certas sutilezas que de outro modo passariam batidas. Buenas, guardadas as devidas proporções (Maria Carpeaux, gigante - Mario Telmo, liliputiano), segue minha opinião de cinéfilo meia-boca.
Inicialmente, parece que o mote do filme é o mesmo daquele do cara que se apaixonou por uma boneca de silicone, “A Garota Ideal”. Você conhece, né? Uma fábula moderna onde uma cidade inteira vive a projeção de um sujeito para ajudá-lo - numa espécie de terapia altruísta - a sair da fantasia (é legal, vale a pena ser visto).
Mas depois de algum tempo a gente percebe que o dilema em “Her” é outro. Algo parecido com o que já se viu em Blade Runner, em Inteligência Artificial (aquele do gurizinho) e na última versão da série Battlestar Galactica (que ameaçou explorar bem o assunto mas que depois - até onde vi - meio que perdeu a mão), entre outros:  se apaixonar por uma máquina? A questão moral/filosófica é praticamente a mesma, mas este filme do Spike Jonze se diferencia dos demais. Não se trata de atração por uma boneca (um ser inanimado), mas também sequer se trata de paixão por algo corpóreo. O personagem principal se envolve com uma voz. O máximo que se pode conceder em termos de materialidade é que o cara começou a gostar de um chip.
Nos outros filmes, os clones de seres humanos (replicantes no Blade Runner, Cylons no Galactica, etc) são retratados como criaturas superiores ao homem, porque além de serem fisicamente mais resistentes e ágeis, são capazes de aprender através da observação e análise e se auto-replicar. Imagino que a premissa aí é de que eles podem realizar cada vez mais atividades neuronais, sinapses ou sei lá que outros nomes se dá pra esse negócio de usar o cérebro mais e melhor. Então, se as criaturas constroem cérebros cada vez mais complexos, é previsível que em dado momento se tornarão mais inteligentes que os seus criadores (que também têm cérebros complexos, mas não desenvolvem). Na minha opiniãozinha o que sempre faltou nesses filmes é uma explicação mais aprofundada (uma tentativa de), sobre o momento em que uma programação (ou algo que o valha) vira consciência. Seria o equivalente a dizer o momento em que uma máquina adquire alma. Isso é dado de barato ou fica em suspenso e geralmente é essa incerteza que sustenta esses filmes, que mantém a tensão. Tudo bem, os filmes não deixam de ser interessantes, mas também ficam muitos buracos na trama. Destrinchar isso levaria muito tempo e seria necessário escrever um livro, mas resumindo dá pra dizer que é muito antropocêntrico (e bobo) quando nos filmes os clones de gente desenvolvem sentimentos humanos. Eles odeiam, ficam tristes, choram e, principalmente, se apaixonam pelos criadores. Quem bola estas histórias, parte do pressuposto (imagino) de que a evolução de uma inteligência artificial passa, necessariamente, pela apreensão e desenvolvimento de características psicológicas humanas. Mas as características psicológicas humanas são fruto de uma infinidade de causas (sociais, culturais, antropológicas, alimentares, climáticas, etc, etc) a que uma máquina, presumivelmente, não está sujeita. Uma máquina analisaria, cruzaria milhões de informações num milésimo de segundo e, amparada em alguns critérios, obteria uma resposta, uma indicação que não conduzisse a um novo erro, esse negócio tão familiar aos humanos.
Mas aí está uma boa questão: quais seriam estes critérios? É muito difícil falar sobre essas coisas, porque nós, homens, não podemos viver sem o erro. A Ciência diz isso. Portanto, falar de uma inteligência evoluída, uma que não incidisse em erros (ou que pelo menos não incidisse nos mesmos erros que nós) é falar de uma coisa que não conhecemos, ou seja, como não temos parâmetros, só podemos fazer um exercício de imaginação. Tudo bem, isso vale. O Einstein não dizia que a imaginação vale mais que o conhecimento? O problema é que existem imaginações boas e outras nem tanto. Em geral é nem tanto.
É muito mais legal quando os filmes não reduzem as inteligências artificiais a simples arremedos de seres humanos, e sim deixam a coisa no terreno do insondável, como fez o Kubrick em 2001, Uma Odisseia no Espaço. É mais honesto também. E é neste aspecto que o filme “Her” se destaca. Embora mantenha o clichê da máquina apaixonada pelo humano, faz isso com uma certa ambiguidade e mostra, no final, a máquina transcendendo a condição humana, abandonando o homem porque as suas (da máquina) investigações sobre o mundo tornaram inviável a coexistência. É triste e bonito. É instigante, faz pensar.
Nenhuma comparação com o filme do Kubrick, claro. São coisas completamente diferentes. O “Her” é mais palatável, mais pra consumo rápido. Pode ser visto como uma crítica ao processo de individualização que as pessoas estão vivendo. Em dado momento do filme, a “namorada” do protagonista revela que está “envolvida” com milhares de outros usuários e que, por 641 deles, está apaixonada. O sujeito começa a observar as pessoas ao redor, todas falando sozinhas e rindo, todas com um dispositivo auricular, vivendo seus romances virtuais. Isso vai um pouco além, mas não é tão diferente do que se vê hoje. Eu vejo com um misto de desprezo e curiosidade todas essas pessoas fuçando o tempo todo nos seus celulares, tablets e sei lá mais o que. É doido. Estamos vivendo um momento muito estranho. No início me dava ao trabalho de contar quantas pessoas, no trem, ficavam futricando nos seus aparelhinhos, depois deixei de lado pois se tornou corriqueiro. Isso deve ter alguma coisa a ver com evolução, é só o que consigo pensar. A gente vai acabar numa Matrix mesmo, não vai? Pensar nisso angustia, mas não dá pra deixar de fazê-lo. Filmes como “Her” talvez sejam visionários, talvez estejam apenas antecipando um negócio que logo chegará.
Foda!

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