segunda-feira, 10 de março de 2008

Família

Meu pai caminha pela casa arrastando umas alpargatas de couro que ele chama "minhas chinelas". O calcanhar grosso amassando a parte de trás do calçado. Difícil saber qual dos dois, se o pé ou a alpargata, tem mais rachaduras. O pai também chama o calcanhar de "garrão". Eu não dava importância pra estas coisas até ler uns livros onde as pessoas também falam assim. Fico prestando atenção quando o pai chama meus tios de "chê" ou tchê. É diferente. Fica parecendo que eles não são irmãos, mas ao mesmo tempo o som desta palavra, e a entonação, carregam uma camaradagem que vai além dos laços familiares. Pergunto a mim mesmo se chamarei meus irmãos e amigos de tchê quando for adulto. Eu penso muito em quando serei adulto, o que não é a mesma coisa que pensar em mim adulto. Por mais que eu tente, nunca consigo imaginar-me como alguém diferente do que sou. É difícil ver uma outra realidade que não esta. Penso sempre que um eu adulto será um outro eu e parece inevitável que este eu que sou agora tenha que morrer. Tenho isso muito claro comigo, mas ao mesmo tempo a idéia de ser outra pessoa me parece impossível.
- Sempre serei este que sou agora - digo pra mim mesmo.
Meu pai e eu vivemos sozinhos nesta casa há oito anos, desde o dia em que minha mãe morreu de um câncer no útero. Agora está acontecendo uma coisa triste: a imagem que tenho da minha mãe vem se apagando. Eu vejo suas fotos no álbum - meu pai tirou todos os quadros das paredes - mas isso não ajuda muito. Aquelas mulheres não são a mãe que eu tenho na cabeça. Uma vez roubei um lenço de cabelo da minha prima. Vivia cheirando aquilo, eu era apaixonado por ela. Só que o lenço foi perdendo o cheiro e gesto perdeu o encanto. As fotos da minha mãe também foram "perdendo o cheiro". Não consigo mais achar nestes pedaços de papel qualquer coisa que me convença da essência da mãe que eu tinha. Essas fotos, porque não condizem com a imagem que preservo dela, me fazem pensar no quão sem sentido são as lembranças. Para que servem as lembranças? Para que servem as fotos? Os lenços? Só o que importa é ter a pessoa de verdade. Parece que ter alguém tem que ser o tempo todo, senão não vale, senão é como se nunca tivéssemos possuído. Li num romance - destes que minha tia compra em bancas de revistas - uma frase na qual venho pensando: "o amor vive e se perde nestes pequenos pânicos, nestes esboços de morte que se insinuam durante a ausência do ser amado, uma falta que pode ser passageira, mas que é sempre ausência e que faz tremer ao simples vislumbre do que seria o resto da vida sem essa pessoa". O professor de Literatura fala mal desses romances - que ele chama romances cor-de-rosa - mas acho que este cara acertou em cheio com esta frase.

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