segunda-feira, 10 de março de 2008

Onírico Nítido

O pai me trancou neste quarto. Não sei há quanto tempo já estou preso. Perdi a contagem dos dias por que antes de ele permitir que eu abrisse a janela, era muito, muito escuro aqui dentro. Eu dormia quando tinha sono e sempre que acordava contava como se fosse mais um dia. Mas depois tudo se misturou: o escuro do quarto e o escuro dos meus olhos. Aconteceu também que comecei a dormir a intervalos curtos. Logo a coisa virou uma confusão muito grande na minha cabeça e contar os dias perdeu a importância. O pai me traz comida. No início, quando tudo era escuridão, não enxergava nada, apenas ouvia o barulho do prato roçando o chão de cimento. Aí saía tateando até encontrar. Achava que tinha perdido o senso de direção, pois a mim parecia que o prato estava sempre num lugar diferente. Quando pude abrir a janela, descobri que era isso mesmo: o prato aparece em todos os cantos. Como o pai faz isso? Não sei dizer. Ele agora me traz o prato quando estou dormindo, sempre quando estou dormindo. Eu acordo e como. A comida é ruim, mas isto já não me incomoda tanto quanto antes. Eu simplesmente como a comida. É uma coisa verde com um gosto que eu não conhecia. Não é bom, mas eu como. O pai me pergunta: tu quer ir ao banheiro? Eu digo: não. É verdade, eu nunca quero ir ao banheiro. Muitas vezes pensei em dizer sim, só pra poder sair do quarto, mas não consigo. Me dá um medo terrível só de pensar em mentir sobre isso. Tu quer ir ao banheiro? Não. A voz do pai é como o prato de comida: vem de todos os lados. Parece uma voz cansada. Mais do que isso, parece uma voz cansada de falar comigo. Às vezes tenho a impressão de que é a voz de um homem embaixo d'água, e ele fala o quanto pode até que tem de voltar à superfície pra buscar fôlego. Só que então já não desce mais. Ele fala comigo uma vez por dia, ou então passa um dia sem falar. Lembro uma vez em que a voz sumiu por dois dias. Foram também dois dias sem comer. Quando ela finalmente ressurgiu, estava mais cansada do que nunca. Tu quer ir ao banheiro? Não. O pai nunca esquece de perguntar isso. Acho que é uma das coisas que ele está estudando. Já faz tanto tempo desde que me prendeu aqui. Um dia, ainda quando tudo era escuro, o pai disse: Hoje é uma data importante, vou abrir tua janela. É noite agora. Olha bastante pro briho da lua, pra ir acostumando teus olhos à luz. Aí então ouvi um barulho às minhas costas e surgiu um quadrado luminoso no chão do quarto. Logo depois eu vi a lua. Consegui ver também algumas poucas estrelas. Naquela noite eu chorei, mas se me perguntassem por que chorei, não saberia dizer. Talvez fossem só os meus olhos desacostumados à luz. O pai havia colocado junto à janela uma coisa que parecia um funil. Eu não podia enxergar nada pra baixo, pra frente ou pros lados, mas erguendo a cabeça eu tinha agora um retângulo de céu. Para mim era luz que não acabava mais. Me senti feliz.

Um comentário:

Anônimo disse...

Muy bueno, Guerreiro!! Tem mais de onde veio esse? Produção recente ou do gavetão?

Abrazz